A imprensa cancela "Friends" e elege Bolsonaro

O UOL está em campanha contra a série "Friends".

"É sempre bom ter um olhar crítico e mais cuidadoso com o que é consumido —mesmo sendo entretenimento. 'Friends' tem lados incríveis, personagens inesquecíveis, situações que fazem qualquer um morrer de rir. Não vamos cancelar, mas também não precisamos passar pano em tudo. Até as coisas mais legais do mundo têm problemas", disse o portal.

"Friends" tem mesmo muitos problemas. O elenco e o texto são os dois principais. As queixas do portal, entretanto, são caricaturais. Tomemos como exemplo a crença racial. Brasil e EUA criam um montão de leis, mas são, de fato, lenientes na hora de proteger a população da discriminação racial. Acontece que isso não pode ser resumido ao pôster de um seriado. Quando reduzimos algo sério – como o preconceito – a detalhes estilísticos, permitimos que palermas ganhem terreno acusando "Me, My Wife And Kids" de discriminar brancos. Soa estúpido? Sem dúvidas. Mas nunca custa lembrar: o "Jornal Nacional", outro dia, precisou explicar que a Terra é redonda. São as crenças, dizem.

Quando a imprensa brasileira, mais perdida que o presidente da República em meio à pandemia, importou das redes sociais a discussão sobre o caráter de Michael Scott, personagem principal de "The Office", eu escrevi que o Brasil era o único país do mundo onde as pessoas passavam mais de uma década nas escolas e saíam delas incapazes de compreender sátiras e hipérboles de séries de TV. Um mês depois, a extensão do dano parece maior. Fat Monica tornou-se símbolo do gordofobia. O palerma do Joey, símbolo do machismo. Sabe-se lá Deus o que aconteceria com a Velha Surda ou o Golias se eles caíssem na malha fina desses especialistas.

Depois da selfie, a grande criação das redes sociais foi a indústria do cancelamento. A caçada implacável pela celebridade perfeita, que defeca Nutella e não desperdiça uma platitude, permitiu a youtubers e jornalistas (de pouco ou nenhum talento) o monopólio da virtude viralizada. Para cada lição, um clique. Para cada extorsão moral, um dólar a mais de AdSense. O efeito colateral dessa pasteurização, que só é lucrativa lá fora, é a criação de castas. Se todos são ruins e apenas os porta-vozes da verdade são ilibados, o trabalho de cooptação antiestablishment fica muito mais fácil. Aí, cada clique no seu texto significará dois votos para Jair Bolsonaro.

Assistir "Friends" por dez anos é ruim. Aturar Jair Bolsonaro por mais sete é muito pior.

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Em tempo: a problematização de "Friends" é pauta velha na imprensa americana. O UOL deveria ser mais criativo. Por que não problematizar "Toma Lá Dá Cá"? Ou estudar o racismo estrutural de Caco Antibes em "Sai de Baixo"?