"Infiltrado na Klan" traz Spike Lee didático
Por receio de que alguém possa interpretar uma crítica negativa de “Inflitrado na Klan” como um apoio implícito aos ideais da “organização” retratada no novo filme de Spike Lee – ou seja, a Ku Klux Klan – é preciso começar declarando o seguinte: o diretor tem razão. Os Estados Unidos têm um histórico vergonhoso de racismo (ilustrado muito bem com as cenas de “O Nascimento de uma Nação”) e não há uma ameaça terrorista maior, nos dias de hoje, do que a conivência de líderes populistas com grupos radicais de supremacistas brancos e neo-nazistas.
Nos Estados Unidos, de acordo com o Washington Post, os crimes de ódio aumentaram em 17% no ano passado, chegando a um total de 7.115 – entre os casos registrados, 2.013 tiveram negros como vítimas e 938 foram contra judeus. A extrema-direita orquestrou atentados em Charlottesville, Pittsburgh e na Flórida. Membros do partido democrata, como Hillary Clinton e o ex-presidente Barack Obama, receberam bombas pelos correios.
Infelizmente, passamos por um período de desinformação sistemática, em que se faz necessário falar e repetir obviedades como: o Holocausto aconteceu, ditaduras são ruins, vacine seus filhos, a Terra não é plana, não existe “conspiração globalista” de judeus pedófilos ou doutrinação ideológica com mamadeiras em formato de pênis. Tirando tudo isto da frente – e que Spike Lee tem razão – podemos abordar o filme.
Passado nos anos 1970, John David Washington (filho de Denzel Washington) interpreta Ron Stallworth, o primeiro policial negro de sua cidade. Infiltrado em uma reunião dos Panteras Negras, ele conhece a líder ativista Patrice (Laura Harrier) e o seu discurso pela liberação dos negros. Mais tarde, vê um anúncio da Ku Klux Klan no jornal e decide telefonar para o número publicado, dizendo que adoraria conhecer melhor o grupo, pois também odeia negros, judeus, mexicanos – mas, principalmente, os negros. Para encontrar a Klan, quem assume o lugar de Ron é Flip Zimmerman (Adam Driver), seu parceiro judeu.
No que se refere ao tema do racismo, “Infiltrado na Klan” não é, nem de longe, o filme mais incisivo da filmografia de Spike Lee. Há espaço, inclusive, para o argumento de que nem todos os policiais são racistas – o que, para certas alas da esquerda americana, é um absurdo. Apesar da aparente moderação política, a obra ainda têm os tiques de didatismo que são característicos de Lee. Por exemplo, como se já não fosse óbvio que “Infiltrado na Klan” é uma releitura do gênero blaxploitation, de títulos como “Shaft” e “Coffy”, o diretor ainda sente a necessidade de retratar os personagens discutindo as influências cinematográficas, com ajuda até de cartazes que pipocam na tela.
Sem espaço para um subtexto que não seja idêntico ao texto, Lee sempre teve uma mão pesada, que não conduz o espectador pelo braço, mas pela orelha. Há uma cena em que Ron ouve, de outro policial, os planos da KKK em se distanciar do passado violento para conquistar um apoio maior e conseguir eleger seus próprios representantes ao governo. “Um presidente supremacista?”, Ron pergunta, como se fosse impossível. “Para um negro, você é bastante ingênuo”, responde o policial. Apesar de se passar na década de 1970, tudo parece forçosamente calculado para tratar da atual situação política americana, em um nível que beira o anacrônico.
No fim do filme, cenas reais de passeatas neo-nazistas, incluindo o atentado terrorista em Charlottesville e a fala do presidente Donald Trump de que “ambos os lados têm boas pessoas”, confirmam o que já havia sido entendido e subentendido com “Infiltrado na Klan”. Em um momento, porém, em que tudo precisa ser muito bem explicado e verificado, talvez o didatismo de Spike Lee seja realmente necessário – ainda que o filme não vá ser assistido por quem deveria assistir.