Silvio Santos sintonizava o Brasil

Silvio Santos tinha orgulho da vice-liderança do SBT. Mais importante do que gastar milhões de dólares para --tentar-- bater de frente com a Globo era fazer parte do imaginário da população. E nada na TV é mais brasileiro, mais imagético, mais frenético do que o dono do Sistema Brasileiro de Televisão.

Fazer fortuna com um carnê de mercadorias é um feito e tanto, mas nada comparável a concorrer com a Globo, maior emissora da história do Brasil, com tanta graça. O "Fantástico", que há cinquenta anos engana todo mundo com esse nome pomposo, perdeu para "Show de Calouros", "Em Nome do Amor", "Topa Tudo Por Dinheiro", "Casa dos Artistas" e "Show do Milhão". A revista eletrônica dos sonhos impossíveis, das reportagens miraculosas e dos artistas de primeira grandeza era batida, com relativa frequência, por brincadeiras e dinâmicas propaladas por ele: Silvio Santos.

Quem viu a final da "Casa dos Artistas 1" é privilegiado. Durante quatro horas, Silvio fez a Globo de gato e sapato. Simulou intervalos comerciais para ludibriar o "Fantástico", improvisou um crossover com o "Terceiro Tempo" de Milton Neves, reprisou um merchandising da Fiat para ganhar tempo --e fez o Dobló, utilitário tipo Fiorino, bater recorde de vendas-- e deu uma aula de react para os tiktokers ao entregar uma mala com R$ 300 mil ao vivo para Barbara Paz. Supla, vice-campeão da competição, jamais venderia 500 mil discos sem o VJ Silvio Santos ao seu lado. Perto da meia-noite, a Globo perdia de 16 a 55 no ibope. 16 a 55. Traduzindo: 55% dos televisores de São Paulo estavam ligados no SBT. Uma surra que nem o mundial do Corinthians, em 2000, conseguiu aplicar. Histórico. Meteórico. Metódico.

O segredo da "Casa dos Artistas 1" era a novidade. Em 2001, só sabia o que era reality show quem assinava Sony e a molecada que assistia "Real World" na MTV. Silvio introduziu esse gênero na TV aberta, pegando o espectador pela mão. Com o mote "vamos olhar pelo buraco da fechadura", o vendedor de sonhos do baú da felicidade colocou no carrinho de supermercado do controle remoto de milhões de brasileiros um produto americano, novo, que a Globo demoraria alguns meses para embalar. E em um domingo fez tudo funcionar. Mais: com as exibições diárias, fez a novela "O Clone" suar o véu. Vale lembrar quem foi o garoto propaganda do Real, em 1994. O próprio. Fernando Henrique Cardoso nunca encontraria solução mais genial para a troca da moeda.

Silvio sempre buscou referências hispânicas e americanas para fortalecer o SBT. O "Aqui Agora", jornal popular que subverteu a ideia do repórter estático e engomadinho, era originário da Argentina. Os folhetins de maior sucesso da rede tinham o selo mexicano. "O Dono do Mundo", uma das produções mais sofisticadas de Gilberto Braga, perdeu mais de dez pontos de rating para "Carrossel". Se acontecesse só uma vez seria golpe de sorte. Mas depois da Professora Helena, em 1991, surgiram as pedras preciosas (Topázio, Rubi) e a trilogia das Marias, protagonizada por Thalia. Sempre que a Globo experimentava algo mais sofisticado, mais "vamos tomar um café naquela livraria gracinha do Leblon?", Silvio surgia com uma história palatável, de fácil acesso. E a audiência correspondia. Era o Juventus da Mooca ganhando do Corinthians. Com o apoio dos corintianos.

Torcida. O SBT, e isso vem de décadas, sempre contou com o apoio do público. Os comerciais comemorando as porradas do SBT na Globo davam mais audiência do que os programas em si. Quando ele perguntava a Gugu se "a coisa estava subindo", o público imediatamente se identificava, balançando os bracinhos na poltrona. Era um senso de pertencimento estranho, um regozijo sem lógica, mas legítimo. Na década de 1990, o antiestablishment era o Ivo Holanda tacando tortas na cara dos curiosos na Marechal Deodoro para Silvio gargalhar ao lado das colegas de auditório. O sistema era a novela asseada do canal ao lado. Por melhor que fosse o cardápio do Roberto Marinho, o cara que todos queriam convidar para o churrasco era o Silvio.

Sem Silvio Santos, o Brasil fica fora do ar. Com o inconsciente suspenso, coberto por um colorbar.