Antes de "A Força do Querer", Bolinha, Silvio Santos, Rogéria e Roberta Close levaram universo trans para a TV

"A Força do Querer" encerra sua trajetória com quase 36 pontos de média em São Paulo. Trata-se do melhor resultado da faixa mais nobre da Globo desde o fenômeno "Avenida Brasil". Para avaliar o salto de audiência da Globo e os temas propostos por Glória Perez, precursora do merchandising social em folhetins, conversei com um dos maiores especialistas em história de TV do país, o professor Fernando Morgado.

***

TELEGUIADO: As novelas da Globo tendem a recuperar a audiência perdida para SBT e Record à medida que desistirem de copiar a estrutura e a densidade das séries americanas?
FERNANDO MORGADO: Vivemos um momento muito interessante de ser analisado na televisão brasileira. Mesmo diante do avanço das novas tecnologias e do processo de digitalização do sinal aberto, as novelas da Globo têm conseguido manter e, em alguns casos, até recuperar audiência. No caso específico de "A Força do Querer", não se pode deixar de registrar a competência de Glória Perez na condução de tramas que prendem o grande público. Em termos de audiência, é a principal autora da Globo. Mas, além dos méritos da Glória Perez, da equipe e do elenco da novela, é importante frisar o novo momento que a emissora vive. Contando com Silvio de Abreu na direção do departamento de dramaturgia diária, ela tem procurado renovar a estética e as temáticas das suas tramas. Em um processo natural de experimentação, de tentativa e erro, a Globo tem conseguido absorver o alto nível estético das melhores produções estrangeiras, mas sem perder de vista os elementos fundamentais de um folhetim, como a agilidade, os ganchos e os temas polêmicos.

TELEGUIADO: A novela "A Força do Querer" desenvolveu um forte trabalho de "merchandising social" sobre os transgêneros. Antes de Glória Perez, nenhum outro programa de TV humanizou os transgêneros?
FERNANDO MORGADO: Uma das primeiras novelas da Rede Manchete, "Mania de Querer", de 1986, teve sua abertura protagonizada por Roberta Close (assista no fim da entrevista). Nessa abertura, era explorada a sensualidade da modelo, sem nenhuma menção ao fato dela ser transgênero. Ainda nas novelas, Rogéria interpretou Ninete em "Tieta" (assista no fim da entrevista). Agora, de fato, nenhuma novela havia explorado o aspecto mais humano dos transgêneros como "A Força do Querer". Quanto a outros tipos de programa, lembro que Roberta Close chegou a apresentar um quadro de entrevistas dentro do "Programa de Domingo", também na Manchete, sob a direção de Fernando Barbosa Lima. Nele, a sua postura como entrevistadora era absolutamente natural e o fato dela ser transgênero não interferia em nada (assista no fim da entrevista).

TELEGUIADO: Os programas de calouros da década de 1980 são precursores da humanização dos transgêneros?
FERNANDO MORGADO: De certo modo, considero que sim, especialmente os transgêneros que se dedicam a trabalhos artísticos, como dança, fotografia ou passarela, por exemplo. Os programas de auditório são o grande espaço para que artistas e público se aproximem, inclusive fisicamente, pela proximidade entre palco e plateia. Nesse sentido, pessoas como Bolinha e Silvio Santos foram pioneiros por abrirem espaço para que artistas transgêneros pudessem se apresentar diante de uma audiência ampla e variada. Foi graças a esses programas de auditório que muitos brasileiros tiveram o primeiro contato, ainda que apenas através da TV, com pessoas trans.

TELEGUIADO: As novelas de Gloria Perez popularizaram o "merchandising social" na década de 1990. As ações idealizadas de lá para cá geraram mudanças de comportamento na sociedade?
FERNANDO MORGADO: Toda novela de grande sucesso provoca mudanças no comportamento na sociedade, ainda que algumas dessas mudanças sejam mais profundas e perenes que outras. O uso desse poderoso meio de comunicação para promoção não apenas de produtos ou serviços, mas também de causas sociais, é algo muito positivo. Alguns casos de merchandising social foram extremamente marcantes, como a questão da reforma agrária em "O Rei do Gado", das crianças desaparecidas em "Explode Coração" e do câncer de mama em "Páginas da Vida". Além de dar visibilidade para temas importantes, essas ações chamam para a reflexão pessoas que até então tinham pouca ou nenhuma informação a respeito de assuntos delicados. Para mim, esse é o maior mérito do merchandising social: ser um ponto de partida para um debate amplo em toda a sociedade em torno de determinado tema.

TELEGUIADO: O "merchandising social" beneficia mais a sociedade ou a imagem da emissora que exibe a novela?
FERNANDO MORGADO: Ambos, e é bom que seja assim. Trata-se de um ciclo que se retroalimenta: a sociedade ganha maturidade com o debate e a emissora ganha prestígio com o debate porque o promoveu. Trata-se de uma lógica que amplia a importância do meio televisão na sociedade, indo além do seu papel fundamental de entreter o público, e reforça o seu caráter de serviço público.

**

VÍDEOS
ABERTURA DE MANIA DE QUERER

PERSONAGEM DE ROGÉRIA EM "TIETA"

ROBERTA CLOSE NO PROGRAMA DE DOMINGO