O Perverso Clube do Bolinha

“Qualquer um que já tenha dito que o Fantastic Fest e a Drafthouse são apenas a versão geek do clássico Clube do Bolinha, ficou comprovado que você tem razão. Acabamos de ver o Clube em ação. Aí está, o Clube ignorando a vítima enquanto cria um anel de proteção ao redor do agressor. Dizendo a cada mulher que já foi assediada ou agredida que os homens predatórios à sua volta serão protegidos se fizerem parte do Clube. Dizendo a cada mulher que o Homem Triste cuja vida está em frangalhos por culpa de suas próprias ações merece ajuda e auxílio para se refazer enquanto ela merece… nada.” Foi assim que Todd Brown, programador do festival de cinema Fantastic Fest da rede de cinemas Alamo Drafthouse, se demitiu após uma série de escândalos envolvendo Devin Faraci, ex-editor do blog Birth.Movies.Death, que também pertence à rede.

Em 2016, quando vazou a gravação do então candidato à presidência Donald Trump se gabando da fama, dizendo que podia fazer o que quisesse com as mulheres, inclusive agarrá-las pelas partes íntimas, Faraci ficou horrorizado. “A coisa mais reveladora dessa fita do Trump? Ele não estava falando com seu melhor amigo. Ele estava contando vantagem para um apresentador de TV,” comentou no Twitter. Em seguida, uma mulher se manifestou: “pergunta rápida: você se lembra de me agarrar pela vagina e de se vangloriar para os seus amigos, dizendo para eles cheirarem.”

Faraci, até então, acumulava “tretas” na internet e na vida profissional, e era visto por muitos como um bully — Damon Lindelof, roteirista de Lost, disse ao The Hollywood Reporter que abandonou o Twitter por culpa dele e que teve até de fazer terapia pelos ataques constantes que sofria — mas era também um aparente defensor da causa feminista, ou seja, era um “feministo” ou um “esquerdomacho”. Mesmo com a denúncia do abuso, pelo qual ele pediu desculpas, Faraci continuou a ser defendido e protegido por uma parcela de fãs e colegas profissionais que achavam que seu papel no meio era mais importante do que suas ações de fato.

Fundada em 1997 por Tim e Karrie League, a Alamo Drafthouse é considerada uma das melhores redes de cinema do mundo pela experiência única que ela proporciona. É proibido conversar ou mexer no telefone durante a sessão. Quem insistir, pode ser retirado da sala. Há programação especial com filmes clássicos, independentes, documentários, entrevistas com convidados especiais etc.. Trata-se de uma iniciativa que deveria criar um espaço seguro para a apreciação pura e simples do cinema, sem interferências.

Entra o Clube do Bolinha.

Alegando problemas com o abuso de drogas e necessidade de tratamento, Faraci foi, em tese, afastado do blog que editava e da Drafthouse como um todo. O que de fato ocorreu é que ele continuou trabalhando, sem grandes consequências profissionais, até Tim League anunciar seu retorno oficial à equipe, onze meses depois da acusação feita em 2016:

“Sua saída do Birth.Movies.Death significou a perda do seu emprego, seu ganha-pão, sua carreira e seu lugar na comunidade cinematográfica, mas Devin começou a se refazer, compreendendo que todo o resto é secundário. Vendo todo esse esforço que ele tem feito para admitir suas falhas, reconhecer seu vício e melhorar, achei que era importante contribuir com seu processo de recuperação e ajudá-lo com alguma forma de ganhar um sustento[…]”.

Com o seu "retorno", outras mulheres assediadas começaram a se manifestar, inclusive uma que chegou a se comunicar com o próprio League. Em outubro de 2016, ela trocou emails com o dono da Drafthouse para avisar do comportamento abusivo de Faraci. League respondeu: “Hey, Desculpe pela demora em responder. Tudo isso aconteceu no meio das minhas férias (problema de gente rica, eu sei…). Como você sabe, o Devin se afastou. Obrigado por compartilhar sua história e sinto muito por ouvir essa experiência. Estive conversando com Devin ultimamente e ele tem passado por um exame de consciência muito sério. Espero que ele saia disso uma pessoa melhor. Eu gostaria que você mantivesse esta conversa entre nós. Estamos tentando seguir em frente com a marca BMD, mas eu queria te responder pessoalmente. Abç, Tim League”.

A decisão de League em dar uma segunda chance ao amigo ganha tons mais sinistros com a descoberta de que ele sabia de outros casos e que havia pedido para a vítima não falar nada para ninguém. Sofrendo uma nova chuva de críticas, Faraci pede demissão. Não se sabe se desta vez é de verdade.

Depois foi a vez de Harry Knowles, do Ain’t It Cool News.

Qualquer pessoa na faixa dos 30 anos, com tendências cinéfilas e muitas horas online, conhece a influência do Ain’t It Cool News. Harry Knowles é responsável pelo primeiro grande boom de blogs dedicados a resenhas e notícias de cinema.

Paródia do blog - Os Simpsons

Knowles é também um dos fundadores do Fantastic Fest, da Alamo Drafthouse. Também foi acusado de assédio, por diversas mulheres. E também foi protegido por Tim League e outros colegas. De acordo com reportagem do IndieWire, Jasmine Baker, que trabalhou na Drafthouse entre 2003 e 2007, procurou Tim e Karrie League para falar que Knowles tinha apalpado suas pernas e seu quadril e que colocou a mão por debaixo de sua camisa, que ela pediu para ele parar e que ele só riu. O casal aconselhou apenas para “evitá-lo”.

Com a repercussão da reportagem, Knowles diz ter se afastado do blog, deixando sua irmã no comando (muitos duvidam). Os críticos Eric Vespe e Steve Prokopy pediram demissão. “Depois das acusações ao comportamento impossível de se defender de Harry Knowles, eu não posso, em sã consciência, contribuir à marca que ajudei a construir nos últimos vinte anos,” Vespe declarou. A Drafthouse também alega que não tem mais nenhum vínculo com Knowles.

Muitas das mulheres abusadas aguardam meses, ou mesmo anos, até de fato conseguir abordar suas histórias em público. É sempre necessário que uma mulher quebre o silêncio para que outras comecem a surgir com histórias semelhantes. Em reportagem no Daily Beast, Jasmine Baker (uma das poucas que é identificada pelo nome e sobrenome) diz que resolveu se manifestar agora pelo bem de outras mulheres com quem vem interagindo. “Elas me contam que têm medo de gente como o Harry, porque elas recebem mensagens dessas vindas dele e não falam nada pra ele ou pra ninguém por causa da sua influência na comunidade[…]Se eu quisesse, hipoteticamente, escrever para o Harry, e ele me assediasse, eu me sentiria um pouco desconfortável em dizer alguma coisa ou em expô-lo, porque eu gostaria de escrever pra ele e teria medo de dizer algo que me colocaria em uma lista negra. E aí com quem eu trabalharia?”

Um caso ainda mais notório é o de Harvey Weinstein, produtor de Quentin Tarantino, Steven Soderbergh, Michael Moore e muitos outros, responsável por seis filmes ganhadores do Oscar de Melhor Filme e centenas de indicações, que acumula casos de assédio sexual desde a década de 1990 e que só agora foi exposto, graças à reportagem do The New York Times.

De acordo com a reportagem, Weinstein fechou acordos, sob termo de sigilo, com uma assistente de Nova Iorque em 1990, uma atriz em 1997, uma assistente de Londres em 1998, uma modelo italiana em 2015 e com Lauren O’Connor logo depois. Na reportagem, O’Connor, uma ex-assistente, conta que Weinstein, nu em seu quarto de hotel, insistiu que ela lhe fizesse uma massagem. “Eu sou uma mulher de 28 anos tentando ganhar a vida e crescer na carreira. Harvey Weinstein tem 64 anos, é famoso mundialmente e esta é a sua empresa. O equilíbrio de poder é 0 para mim e 10 para Harvey Weinstein,” O'Connor escreveu aos membros do conselho da empresa antes de fechar acordo com Weinstein.

Dezenas de ex-funcionários e funcionários, desde assistentes até executivos do topo, declararam que sabiam da conduta de Weinstein. Pouquíssimos chegaram a confrontá-lo, pois assinaram contratos dizendo que não criticariam seus superiores de forma a prejudicar a “reputação da empresa” ou “a reputação pessoal de qualquer funcionário”.

“Estou apenas começando na minha carreira, estava e ainda estou com medo de falar, mas continuar em silêncio está me causando uma angústia muito grande” O’Connor escreveu. O mesmo aconteceu com a atriz Ashley Judd, que só agora veio a público sobre um episódio ocorrido vinte anos atrás: “As mulheres têm falado sobre o Harvey entre nós mesmas há muito tempo e já passou da hora de termos esta conversa publicamente.”

Depois do furo do The New York Times, mais ex-funcionárias e mais atrizes resolveram contar suas histórias, incluindo Rose McGowan, Asia Argento, Mira Sorvino, Rosana Arquette, Heather Graham, Gwyneth Paltrow e Angelina Jolie. Há casos de estupro. A modelo e atriz Ambra Battilana Gutierrez conseguiu gravar Harvey Weinstein admitindo ter tocado nela e que estava "acostumado" com esse tipo de coisa.

Na vida pública, Weinstein lembra Faraci, de temperamento explosivo, dado inclusive a confrontos físicos, mas um aparente defensor da causa feminista, vencedor inclusive de prêmios humanitários. Em 2015, no mesmo ano em que O’Connor escreveu aos membros do conselho, sua companhia fez a distribuição de um documentário sobre o estupro em universidades. Durante o Festival de Sundance, participou da marcha das mulheres em Utah. Nestes casos, o ativismo é como um facilitador, aproxima o agressor das vítimas e oferece lugar privilegiado na sociedade, permitindo que, na vida particular, ele continue a fazer o que bem entende e com a benção de seus pares.

Alguns conservadores americanos tentaram politizar o caso todo, já que Weinstein é um democrata fervoroso, doador generoso das campanhas de Obama e de Hillary Clinton, mas, para isso, seria necessário esquecer Bill O'Reilly da Fox News ou a longa lista de mulheres que acusaram o próprio Donald Trump. Assédio sexual não é monopólio da direita ou da esquerda, mas faz parte de uma patologia perversa que acomete homens inseguros e desprezíveis de todas as opiniões políticas. A única diferença são os graus de hipocrisia.

Antes de combater essa ou aquela ideologia, é preciso pensar no Clube do Bolinha. Todos estes exemplos, de Faraci a Weinstein, contaram com uma rede de apoio, fundamentada sobretudo no silêncio e no medo, para continuar operando como se nada tivesse acontecido. É verdade que as mulheres precisam ter mais coragem para denunciar, mas os homens também precisam se responsabilizar pelos próprios atos e/ou parar de dar suporte aqueles que não conseguem o mínimo, que é se controlar perto de uma mulher. Outros grandes passos: Acredite na mulher, que ela não fez por merecer, ela não provocou, não reforce ainda mais essa situação de silêncio e medo.

Há alguns anos, o termo “representatividade” vem sendo usado de forma mais ou menos aleatória, como algo benéfico, mas sem um significado muito forte. Para tentar refletir o gosto popular, a própria Academy Awards tem adicionado membros mais jovens, de outras etnias e, sobretudo, mulheres, para contrabalancear o ponto de vista da maioria de homens brancos da terceira idade. A política de identidade é um tema delicado, ainda mais misturado com as artes, mas a representatividade por si só tem um caráter civilizatório. "Você nunca compreende uma pessoa de verdade até considerar as coisas do seu ponto de vista…até adentrar sua pele e dar uma volta por aí," já dizia Atticus Finch em O Sol é Para Todos.

Enquanto o meio do entretenimento, do glamour das produções Hollywoodianas aos cafundós geeks da crítica especializada, for monopólio masculino, esses casos de abuso de poder, sempre com um Clube do Bolinha de suporte, vão continuar ocorrendo.