Bryan Cranston brilha em "Ilha dos Cachorros"
Apesar da estreia em período de férias escolares, a nova animação do diretor Wes Anderson, "Ilha dos Cachorros", não deve ser considerada um filme infantil. Nos Estados Unidos, por exemplo, o longa recebeu classificação 13 anos por mostrar “imagens violentas” (os cachorros brigam, uma orelha é arrancada, outros sofrem com experimentos científicos etc). Considerando que a maioria das crianças vê violência igual ou pior na televisão, na internet e/ou nos videogames, as cenas não devem ser um problema. O que torna “Ilha dos Cachorros” mais adulto é, na verdade, a complexidade dos temas tratados. Anderson é muito conhecido pela estética colorida e perfeccionista, com quadros milimetricamente elaborados, mas sua obra trata de assuntos muito mais sóbrios e caóticos do que a aparência.
Em um futuro não tão distante, Kobayashi (voz de Kunichi Nomura), prefeito de uma cidade japonesa chamada Megasaki, decide banir todos os cachorros e mandá-los para uma ilha cheia de lixo. Uma praga misteriosa, conhecida como “febre do focinho”, infectou toda a população canina e pode ameaçar também a saúde dos humanos. Para provar que o assunto é sério, Kobayashi escolhe o cachorro da família, Spots (Liev Schreiber), como o primeiro exilado. Spots é, na verdade, o guardião de Atari (Koyu Rankin), sobrinho do prefeito. Revoltado, Atari foge e rouba um avião para resgatar o seu melhor amigo. Na ilha, ele conta com a ajuda de uma matilha de cães abandonados: Rex (Edward Norton), King (Bob Balaban), Boss (Bill Murray), Luke (Jeff Goldblum) e o anti-social Chief (Bryan Cranston).
Em “Ilha dos Cachorros”, os cachorros falam inglês e os humanos falam japonês (com exceção da aluna de intercâmbio interpretada por Greta Gerwig e da tradutora que, vez ou outra, ajudar a expor a trama). Não há legendas para as falas em japonês. A ideia é imaginar um mundo do ponto de vista de um cachorro, onde você não entende quase nada – a não ser que saiba japonês. Por decisões como esta, o diretor virou alvo de polêmica, atacado por quem acha que a animação se apropria da cultura japonesa de forma racista e defendido por aqueles (inclusive, japoneses) que acreditam que trata-se apenas de uma homenagem, com base até mesmo em filmes de Akira Kurosawa.
Anderson sempre sentiu uma inegável atração pelo exótico, adicionando diferentes etnias e religiões para dar mais “sabor" aos seus filmes, como o Sr. Pagoda em "Os Excêntricos Tenenbaums” ou até mesmo o personagem interpretado por Seu Jorge em “A Vida Marinha com Steve Zissou”. Em “Viagem a Darjeeling”, toda a Índia serve como um peculiar retiro espiritual para três homens brancos deprimidos – até se depararem com o afogamento de um menino local e perceberem que a vida ali significa mais do que um clichê turístico de elevação da alma.
Na busca por uma representação menos caricata, que não trate o diferente como bizarro ou extravagante, Anderson pode parecer um inimigo, muito deslocado para sentir uma empatia genuína pelos personagens que cultiva, usando o "estranho" como um mero acessório de moda. A crítica é valida, mas a acusação é pesada. Basta perceber como Anderson trata seus personagens brancos, isto é, com o mesmo preciosismo e distanciamento “cool" de quem escolheu, por característica e estilo próprios, transmitir conteúdo através da aparência.
De fato, Hollywood não tem o melhor histórico com uma representação asiática de qualidade. Filmes de temáticas orientais são encabeçados por atores brancos. Diretores e roteiristas asiáticos também não costumam receber grandes orçamentos para contar suas histórias. No caso de “Ilha dos Cachorros”, porém, Anderson trabalhou em parceria com Kunichi Nomura para criar um roteiro que representasse a cultura japonesa de forma autêntica, com detalhes e pequenas piadas que só os nativos podem perceber: “As pessoas vão poder aproveitar de muitas formas,” disse Nomura.
E como há detalhes! Anderson se utiliza, de novo, de um cuidado obsessivo por minúcias (da história do relacionamento do povo japonês com os caninos, toda retratada em figuras de estilo tradicional, ao espirro constante dos cachorros contaminados) para criar um universo coeso e palpável, onde cada movimento e cada objeto tem o seu sentido. O resultado é lindo, mas pode sobrecarregar espectadores menos atentos. Há, também, um subtom político não muito escancarado, mas apropriado para o momento.
Bryan Cranston é responsável pela melhor performance do filme – e talvez de sua carreira – como o cachorro agressivo que, aos poucos, passa a gostar de Atari. É a sua dublagem cuidadosa que transmite tão bem um personagem maltratado, que usa a raiva para esconder o medo, e que, aos poucos, aprende que vale a pena ser mais vulnerável e se abrir. Para entendê-lo por completo, talvez seja necessário, de fato, ter um pouco mais de experiência de vida.