Edir Macedo, o herói das massas em "Nada a Perder"

A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), fundada em 1977 pelo bispo Edir Macedo, coleciona as acusações de desvio de dinheiro, sonegação fiscal, falsidade ideológica, estelionato, importação ilegal e discriminação religiosa – sem falar da série de reportagens feitas no ano passado pela emissora portuguesa TVI, intitulada “O Segredo dos Deuses”, sobre um suposto tráfico internacional de crianças, entre os anos 1980 e 1990, dentro da própria Igreja. É importante destacar estas denúncias, pois, se dependermos apenas das informações apresentadas no filme “Nada a Perder”, Edir Macedo é nada mais do que um injustiçado, perseguido de forma cruel pela mídia, pela polícia e pela Justiça, todos uns recalcados. Parece familiar?

Com uma estreia maior do que a de “Os Dez Mandamentos”, a maior bilheteria da história do cinema nacional, o longa (longuíssimo, não acaba nunca) dirigido por Alexandre Avancini é um sucesso estrondoso de bilheteria. Apesar da venda antecipada de 4 milhões de ingressos, porém, os cinemas ficaram vazios. Dividi minha sala com um casal de idosos e um rapaz que apareceu na metade do filme, dormiu e foi embora antes do fim. Já na época do lançamento de “Os Dez Mandamentos”, outro triunfo de cadeiras vazias, a IURD negou a possibilidade de que os ingressos foram comprados pela Igreja a fim de estabelecer o recorde, dizendo que a imprensa “rancorosa e preconceituosa” apelava para as “fake news”. Edir Macedo utiliza os mesmos argumentos de Lula, Donald Trump ou Valesca Popozuda. Qualquer questionamento ou crítica é inveja. Preconceito.

O filme em si demonstra todo o seu potencial já nos créditos de abertura, com os logotipos dos patrocinadores em baixa resolução, exibindo o clássico serrilhado nas extremidades. Houve um tempo em que o principal desafio do cinema brasileiro era a parte técnica, uma boa fotografia, um som de qualidade. “Nada a Perder” é decente nestes departamentos, a iluminação é bonita, até a direção de arte é caprichadinha, o problema – do filme em questão e também do cinema nacional atual – é o roteiro e a atuação. Todo o didatismo, o exagero, o melodrama.

Começamos com um Edir Macedo (Petrônio Gontijo) sendo preso, mandado para uma cela cheio de canetas no bolso da camisa – ok, falta de atenção aos detalhes é outro problema das nossas produções –, onde ele relembra a sua infância. Parece que o pequeno Edir sofria bullying por conta de uma deficiência nas mãos. Pelo filme, não entendi em nenhum momento qual era a deficiência. É algo que o roteiro nos informa, mas a direção não sabe mostrar, obrigando o público a acreditar que, sim, ele sofre muito. Por quê? Não sei.

Tentando escalar uma árvore para provar o seu valor aos meninos da vizinhança, ele pede a ajuda de Deus, mas cai, apanha da galera e briga com a religião. “Nada a Perder” é cheio de momentos assim, Edir encontra um obstáculo, pede a ajuda de Deus, não é atendido e se revolta. São pequenas tragédias, acompanhadas de uma trilha sonora de  documentário sobre os horrores da Segunda Guerra Mundial, como a asma da irmã, o fora da namorada e o lábio leporino da filha, que colocam a sua frágil fé em teste. Mais tarde, quando a IURD dá certo, o bordão é “Deus vai nos honrar”, isto é, o dinheiro vai cair do céu para que o corajoso Edir possa pagar o aluguel, comprar um programa de rádio, uma emissora de televisão etc.

“Nada a Perder” faz questão de reforçar a origem pobre do bispo, a casa repleta de baratas que dividia com a esposa Ester (Day Mesquita) e um bebê recém-nascido, mas abandona esta perspectiva mais íntima da vida do casal assim que a família começa a enriquecer, talvez, para evitar perguntas de como, exatamente, Deus "honrou" um patrimônio que inclui, por exemplo, dois apartamentos em Miami avaliados em US$ 6,8 milhões. Dona Ester ainda mata baratas?

Há também o momento bizarro de uma sem-teto que leva um bebê em um caixote de madeira e dá a criança, no meio do culto, para o bispo e a esposa criarem. De acordo com a reportagem da TVI, mães com dificuldades financeiras deixavam seus filhos sob os cuidados da IURD, como se fosse uma creche. As crianças, contudo, teriam sido colocadas para adoção sem o consentimento de suas famílias biológicas. Duas destas crianças foram, supostamente, “adotadas" pelo próprio Edir Macedo. Incluir tal cena, que mostra uma mãe chorando lágrimas de felicidade por entregar o filho ao bispo, é de fazer questionar como qualquer profissional do ramo consegue se envolver neste tipo de obra com uma consciência tranquila.

Depois de mais de duas horas de filme, Edir aparece nos Estados Unidos, acordado no meio da noite por um telefonema que diz: “nosso povo está sendo agredido nas ruas”. Assim o bispo anuncia, acompanhado por uma música digna de os “Vingadores”, “Nada a Perder 2".

O Brasil não tem Capitão América. Não tem Homem de Ferro. Tem, porém, o eterno mito do salvador da pátria, sempre de origem humilde, atazanado por gente despeitada e preconceituosa, mas querido e defendido pelo povo.

Já vimos esse filme antes.