Leia trecho de "O Vento Que Arrasa", romance de Selva Almada

A nova edição de "O Vento Que Arrasa", romance de estreia de Selva Almada, autora finalista do International Booker Prize 2024, chegará às lojas brasileiras em maio, pelas páginas da todavia. A obra, traduzida por Samuel Titan Jr, custa entre R$ 44.90 (e-book) e R$ 69,90 (versão impressa).

O Teleguiado publica abaixo um trecho de "O Vento Que Arrasa".

***

Tapioca voltou com as bebidas: a garrafinha de coca-cola para Leni e o copo d’água para o Reverendo. Entregou-as e ficou parado, como um garçom exageradamente solícito.

Pearson tomou o copo d’água de um gole só. Embora a água estivesse morna e tivesse uma cor duvidosa, o Reverendo sorveu-a como se fosse do mais puro manancial. Se Deus a pôs na terra, tem que ser boa, dizia sempre.

Devolveu o copo vazio ao ajudante, que o segurou com as duas mãos, sem saber o que fazer com ele. Balançava-se de leve, apoiando-se ora num pé, ora no outro.

— Você vai à igreja, rapaz? — perguntou o Reverendo.

Tapioca disse que não e abaixou a cabeça, envergonhado.

— Mas é cristão, não é?

O rapaz parou de se balançar e fincou o olhar na ponta das alpargatas.

Os olhos do Reverendo reluziram. Levantou-se e foi se postar à frente de

Tapioca. Inclinou-se um pouco, tentando ver seu rosto.

— Foi batizado?

Tapioca ergueu a vista e o Reverendo se viu refletido naqueles olhos graúdos e escuros, úmidos como os de um cervo. As pupilas do rapaz se contraíram num ímpeto de curiosidade

— Tapioca — chamou Brauer. — Venha cá. Preciso de você aqui.

O rapaz devolveu o copo ao Reverendo e foi correndo ter com o patrão.

Pearson ergueu o copo sebento e sorriu. Era esta a sua missão na terra: esfregar a sujidade dos espíritos, torná-los puros e preenchê-los com a palavra de Deus.

— Deixe o menino em paz — disse Leni, que acompanhara a cena com atenção, enquanto bebia a coca-cola em golinhos.

— Deus nos põe exatamente onde temos que estar, Elena.

— Temos que estar na casa do pastor Zack, pai.

— Sim, depois.

— Depois do quê?

O pai não respondeu. Ela também não insistiu, não tinha a menor vontade de brigar com ele ou de conhecer seus planos misteriosos.

Viu que Brauer dava ordens a Tapioca e que o rapaz subia numa camionete velha. Enquanto ele manejava o volante, o Gringo pelejava para empurrar o veículo por uns duzentos metros, até a sombra de uma árvore.

Quando chegou aonde queria, o Gringo desabou no chão de terra, ficou de braços abertos e boca escancarada, deixando o ar quente entrar nos pulmões. No peito, o coração parecia um gato metido num saco. Olhou para os pedacinhos de céu que vazavam pela copa rala da árvore.

Brauer já fora um homem muito forte. Aos vinte anos, passava uma corrente por cima dos ombros nus e puxava um trator, sem esforço, só para se divertir com os outros rapazes da mesma idade.

Agora tem três décadas a mais nas costas e é apenas uma sombra do jovem Hércules que se deleitava exibindo a força imensa.

Tapioca inclinou-se por cima dele.

— Ei, chefe, está tudo bem?

Brauer levantou um braço para dizer que sim, mas ainda não conseguia falar; só pôde juntar força suficiente para sorrir e erguer o polegar.

Tapioca riu, aliviado, e foi correndo até a bomba de gasolina para buscar um pouco d’água.

Pelo rabo do olho, o Gringo viu as alpargatas do ajudante levantando poeira, as pernas tortas do rapaz que corria desajeitado, como se fosse um menino e não quase um homem-feito.

Voltou a olhar para o céu retalhado pela árvore. Estava com a camisa empapada e sentia o suor que lhe enchia o umbigo até transbordar e escorrer pelos lados da pança. Aos poucos, a respiração se cadenciou; o coração deixou de sacudir dentro do peito, voltou a encontrar seu lugar entre os ossos. Então veio o repente da tosse, sem aviso, enchendo-lhe a boca de catarro. O Gringo cuspiu tudo, o mais longe que pôde. Procurou um cigarro e o acendeu.