"A Guerra Invisível de Oswald de Andrade" esmiúça vida do escritor

(Por Joselia Aguiar)

De volta de um giro europeu em 1939, no sufoco aflitivo do começo da Segunda Guerra, Oswald de Andrade contou que planejava publicar, “o mais breve possível”, um livro que se chamaria A guerra invisível. Disse ao interlocutor, o repórter Joel Silveira, que já reunia “notas, páginas prontas, observações interessantíssimas”. Tal obra jamais se concretizou.

Uma alternativa àquele projeto, Mariano Marovatto nos propõe esta obra singular, de mesmo título, em que segue os passos do gênio da vanguarda brasileira durante um ano de sua vida, visto até aqui como de hiato produtivo. O resultado é um volume tão perspicaz quanto abrangente, em que lemos as ideias, os encontros, os afetos e as brigas do intelectual brasileiro sob um painel artístico e político internacional. Tratava-se de um ano intenso não só para o modernista, como para o mundo.

Ao percorrer estas páginas, encontramos desde antecedentes, como as origens do “Manifesto Antropófago” e o relacionamento com Patrícia Galvão, até os bastidores do Partido Comunista e do Estado Novo, a ascensão do rádio, do jogador Leônidas da Silva e de Hitler; até chegarmos à morte de Mário de Andrade, o fim do casamento com Julieta Barbara, o rompimento com o amigo e defensor Jorge Amado e os primeiros trechos publicados na imprensa da obra-prima Marco zero.

Naquele ano de 1939, Oswald colaborou no polêmico jornal Meio-Dia, do Rio, e na publicação O Diabo, de Lisboa. Marovatto Imiscuiu-se na famosa roda literária da Livraria José Olympio. Viajou até Estocolmo para um evento frustrado do Pen Clube, onde cruzaria com H. G. Wells, Jules Romains e Thomas Mann. Sem abandonar a intuição, a rebeldia e o humor boêmio, Oswald pensou como poucos a arte e a cultura, enquanto colecionava confusões que lhe renderam a imagem de grã-fino banal inconsequente.

Ao recuperar a originalidade da obra e a trajetória oswaldiana, Marovatto faz uma combinação talentosa de ensaio, perfil biográfico e reconstituição histórica, percorrendo não apenas os arquivos do personagem, como uma bibliografia multidisciplinar. Uma contribuição muitíssimo bem-vinda à melhor não ficção literária contemporânea.

A Guerra Invisível de Oswald de Andrade é editado pela Todavia.

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LEIA UM TRECHO DE "A GUERRA INVISÍVEL DE OSWALD DE ANDRADE"

Nos últimos meses de 1938, Oswald de Andrade costumava contar aos mais próximos uma anedota sobre um sujeito que sofria de um mal contemporâneo chamado “insônia internacional”. O cidadão vivia sozinho num quarto alugado, não tinha bens nem família, não devia dinheiro a agiotas nem pensão para ex-mulheres, ou satisfação para quem quer que fosse. Era um zé-ninguém, ou, como se dizia à época, um “pobre-diabo das ruas”; levava uma vida pacata, medíocre e livre de maiores complicações psicológicas. Dessa forma, como poucos nessa vida, supunha-se que teria ele o “melhor sono da Terra”. Porém, o homem não dormia. Ao se deitar no final do dia, experimentava uma ansiedade gigantesca e totalmente alheia à sua rotina. O espectro que o assombrava vinha de fora: era o mundo em convulsão que o mantinha desperto noites a fio.

A tomada do poder pelo fascismo na Itália e pelo nazismo na Alemanha, regimes que poucos meses antes eram saudados por vozes liberais do Ocidente, punha a paz mundial em xeque. Desde a Grande Depressão, novos conflitos armados, movidos por forças totalitárias, irrompiam a intervalos cada vez mais curtos. O Japão invadira a Manchúria no início da década, a Itália de Mussolini

bombardeara e fizera uso do temido gás mostarda na Etiópia em 1935 e, no ano seguinte, ao lado da Alemanha, abastecera com soldados e armamentos o Exército de Franco na Guerra Civil Espanhola. Algo pior do que a crise de 1929 estava por acontecer, o insone tinha certeza. A invasão de Hitler à Áustria no começo de 1938, conjecturava ele, seria mais um passo da expansão territorial nazista, que agora, em setembro, estava prestes a tomar a região dos sudetos, minoria alemã que nos dez anos anteriores, por conta do Tratado de Versalhes, vivia sob o governo da recém-criada República da Tchecoslováquia.

Desde maio, Adolf Hitler vinha fazendo uma série de ameaças contra a posse tcheca da região. Neville Chamberlain, então primeiro-ministro inglês, viajou uma primeira vez até Munique, onde se encontrou com o chefe de Estado alemão. Após a reunião, o condescendente Chamberlain, a fim de evitar mais um conflito no continente que vivia os estertores da Guerra Civil Espanhola, recomendou ao presidente tcheco Edvard Beneš que aceitasse a proposta de entregar a metade do território dos sudetos à Alemanha. O governo de Praga aceitou a exigência, mas poucos dias depois Hitler impôs novas medidas; exigiu que os territórios de minorias húngaras, turcas e polonesas sob o poder da Tchecoslováquia fossem também desmembrados e determinou um ultimato: caso não fosse ouvido, invadiria o país no dia 1o de outubro. França e Inglaterra, convencidas de que o conflito era iminente, puseram suas tropas de prontidão, ao passo que Hitler, ardiloso, reconsiderava se essa seria sua última reivindicação territorial na Europa.

O homem insone recalculava prognósticos sobre o futuro. Realocava as potências que poderiam sair vitoriosas e as que seriam desgraçadas em um conflito próximo. No dia 29 de setembro, as representações diplomáticas de Inglaterra, França, Itália e Alemanha se encontraram em Munique para um acordo final. Chamberlain e Édouard Daladier aceitaram as imposições de Hitler, apoiado por Mussolini. Com vinte anos incompletos, a Tchecoslováquia foi então retalhada e o governo de Beneš, dissolvido. Chamberlain, tendo em mãos um documento manuscrito, por ele redigido e assinado pelo Führer, que garantiria a paz na Europa, retorna a Londres, onde é saudado em carro aberto pela população nas ruas.

Não é improvável que Oswald, a cada vez que contava a história, inserisse os novos detalhes que surgiam dia após dia com as tensões do Acordo de Munique. Os amigos riam, mas inquietos: afinal, o insone não sofria sem razão. Os paliativos contra a Alemanha sustentados no Tratado de Versalhes ao final da Primeira Guerra Mundial continuavam a gerar mais desforra do que paz. A empáfia dos vencedores de 1918 em privar os alemães de seu grande exército, amputar parte do seu território e, consequentemente, de seu orgulho nacionalista, numa tentativa inconclusa de transformar o país em pária menor do continente europeu, não subjugou o inimigo, pelo contrário: criou o ambiente ideal para que o ovo da serpente fosse chocado.

O insone descrito por Oswald era claramente antifascista. Revirava-se na cama ao imaginar a população famélica da Espanha, desamparada pelas democracias vizinhas, enquanto o Movimento Nacional de Franco aniquilava os voluntários das Brigadas Internacionais. Evocava de olhos fechados o terror dos milhares de soldados chineses na cidade de Hankou sob o ataque aéreo japonês. De acordo com Genolino Amado, um dos que ouviram a anedota, dizia Oswald: “Dormem Daladier, Hitler, Beneš, Chamberlain e o desgraçado não dorme! É a sentinela esquecida do mundo”.1 Ao final da história, não ficava claro para a plateia se o homem insone era de fato conhecido de alguém, até o momento em que o escritor paulista revelasse enfim que o anônimo era um dos seus personagens, parte da multidão que ele vinha rascunhando para o futuro ciclo de romances que se chamaria Marco zero.